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Não aproveitamos a cultura trazida da África, avalia pesquisadora
VIII Enletrarte
Para a professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Maria Nazareth Soares Fonseca, a Língua Portuguesa praticada em países colonizados por Portugal vive tensões que estão presentes na forma de narrar e criar literatura.
Ela fez a palestra de encerramento do VIII Encontro Nacional de Professores de Letras e Artes (Enletrarte), realizado no Instituto Federal Fluminense Campus Campos Centro, na quinta-feira, dia 17 de agosto. Antes disso, concedeu uma entrevista para Assessoria de Comunicação na qual falou sobre a sua especialidade e área do seu campo de pesquisa: a literatura africana em países de Língua Portuguesa.
Ao longo de mais de 50 anos de vida acadêmica, a professora avalia que a sociedade brasileira tem muito a conhecer as suas raízes vindas do continente africano. “Acho que é importantíssimo porque a gente utilizou da escravização dos africanos para criar o Brasil, mas a gente não utilizou a cultura que eles trouxeram para cá. Está na hora de fazer diferente.”
Maria Nazareth é doutora em Literatura Comparada, autora de cinco livros sobre o tema e hoje coordena o literÁfricas, que é um projeto feito pelo Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas responsável pela publicação de textos sobre literaturas africanas de Língua Portuguesa.
PORTAL DO IFFLUMINENSE — O que a literatura africana de língua portuguesa tem a contribuir com a literatura brasileira?
MARIA NAZARETH SOARES FONSECA — Na discussão que vamos apresentar na palestra de encerramento estamos muito centrados em como a língua portuguesa, que foi trazida e levada para os espaços africanos pela colonização portuguesa, como essa língua chegou e vai viver intensas tensões. Vou concentrar nos espaços africanos porque me foi pedido para falar das literaturas africanas. Que tipos de tensões a que essa língua foi exposta? Primeiro uma tensão que ela foi colocada como uma imposição do início e durante a colonização porque todo mecanismo administrativo era falado e escrito em língua portuguesa. De cara, houve uma desconsideração total das línguas locais e o desconhecimento muito grande dos colonizadores de que a África não era um país, de que África era um continente. Então, cada lugar da África tem as suas especificidades. São culturas diferentes. São muitas línguas diferentes.
O Português entra nesse espaço de tensão. E se eu quiser responder para essa pergunta especificamente qual a contribuição que as literaturas africanas de língua portuguesa trouxeram para as literaturas brasileiras, primeiro, eu acho que você precisa pensar num estágio. A Língua Portuguesa falada no Brasil foi, para muitos escritores africanos de língua portuguesa, como se fosse assim um anteparo, já que nós somos obrigados a falar Português e somos obrigados a escrever literaturas em Português que não seja a língua portuguesa de Portugal, que seja a Língua Portuguesa do Brasil.
Então, há momentos específicos na África de Língua Portuguesa em que essa língua brasileira, que era a Língua Portuguesa, mas com o sotaque bem acentuado de Brasil, que essa fosse a inspiração para os escritores e movimentos literários na África.
A Língua Portuguesa, falada e escrita no Brasil, serviu, de certa maneira, para amortecer ou dar outro rumo à tensão que havia entre a imposição da Língua Portuguesa de Portugal e esses espaços culturais africanos. Eu posso dizer que a gente tem provas concretas que muito da literatura brasileira vai ser levada para os espaços africanos.
"A Língua Portuguesa, falada e escrita no Brasil, serviu, de certa maneira, para amortecer ou dar outro rumo à tensão que havia entre a imposição da Língua Portuguesa de Portugal e esses espaços culturais africanos."
Maria Nazareth Soares Fonseca, professora aposentada e pesquisadora da literatura africana de Língua Portuguesa
Quais provas?
Você tem provas concretas de que vários escritores da África leram, de uma forma africana, autores do nosso modernismo brasileiro. Os autores foram tomados como modelos nesses espaços e foram relidos — vamos dizer assim—com os olhos e o coração do Brasil, mas com aquilo que era o objeto comum que era a questão da linguagem. Então, eles vão reler essa Língua Portuguesa se inspirando no modo como ela era utilizada por escritores brasileiros, mas, ao mesmo tempo, vão servir de modelo para muitos escritores africanos e incentivar novas tensões no campo da linguagem.
E quais são essas novas tensões?
Novas tensões no campo da linguagem significam...há um escritor africano que é o (José) Luandino Vieira, de Angola, que fala assim: “A Língua Portuguesa vai ter que se quinbundizar (língua falada em Angola). Vai ter que se assumir africana. É isso que muitos escritores fizeram. Fazer com que a Língua Portuguesa tomasse contornos africanos. E muitas vezes esses contornos foram inspirados pelas tensões com que o modernismo também lidou.
Mas você acha que esse processo acontece hoje?
Hoje, eu não posso dizer que acontece tão intensamente como aconteceu nos anos 40 e 50 antes das independências. Aquela foi a fase mais tensa. Intencionalmente, eles queriam que a Língua Portuguesa se transformasse numa língua africanizada. Não que deixasse de ser a Língua Portuguesa, mas que ela não ficasse, com a imposição do colonialismo, uma ordem de uso, mas que ela se adequasse aos vários usos dos países africanos. Nesse momento, o modernismo foi importante.
Eu poderia dizer que a luta antirracista é uma dessas tensões, ou não?
Eu não teria condições para afirmar isso, não. Claro que têm questões racistas nos países. Mas essas questões são, às vezes, ditas de uma outra forma, muito diferente do Brasil. Esse questionamento da Língua Portuguesa de querer que ela seja africanizada por assim dizer, muitas vezes, essa questão vai ser levada para literatura por escritores descendentes de portugueses. São escritores que nasceram em África mas seus antepassados são portugueses. Essa questão da raça, às vezes, não é tão presente literariamente falando nesses países, porque, no momento em que a tensão da língua foi posta, eles estavam muito mais interessados em afirmar e construir a liberdade dos países com relação ao colonialismo.
E hoje você pode dizer assim que eles estão muito mais interessados em cada vez mais dar autenticidade a uma língua literária do país. É bem diferente do Brasil. Eu não posso falar que as questões de lá são iguaizinhas as de cá. São questões muito específicas.
Quais as diferenças entre a literatura brasileira e africana?
É difícil responder essa pergunta. Mas vou colocar uma questão muito específica. As literaturas africanas de Língua Portuguesa são produzidas em um ambiente em que a oralidade é muito forte. A maioria da população não escreve e não lê, mas se comunica oralmente com uma intensidade muito grande. Então, essas literaturas nascem em espaços de produção oral muito grande. A gente percebe isso na forma de contar histórias ou de criá-las. A gente tem uma presença da oralidade, principalmente, nos contos africanos e em determinados gêneros literários que são mais comunicação mesmo direta.
"Acho que há um avanço. A quantidade de alunos negros e descendentes de africanos que estão entrando nas universidades, nas escolas. Isso não é um favor que governo nenhum está fazendo. "
Maria Nazareth Soares Fonseca, professora aposentada e pesquisadora da literatura africana de Língua Portuguesa
Acho que isso é uma grande diferença. Nós já somos um país vinculados na literatura à escrita. E quando eu falo da oralidade, não é uma oralidade só do uso do Português oral, mas que se expressa nas línguas locais, em alguns países se expressa no crioulo, que em alguns países é a língua intermediária, de uso, e se expressa na diversidade de língua desses países.
E hoje como você avalia o acesso das escolas de nível médio a essa literatura africana de Língua Portuguesa?
Eu falo com você de dois aspectos. Primeiro, que eu estou falando do ponto de vista da teoria da literatura. Eu acho que não deveria haver limites para literatura nas escolas, principalmente, nas universidades onde deveria ter acesso a vários tipos de literatura, se fosse possível fazer isso. Mas no caso em que não é possível, no caso do Brasil, nós somos o 2º país do mundo com maior número de afrodescendentes — na nossa frente só tem a Nigéria — a gente levou muito tempo para assumir isso, sabe?
Para assumir que todos nós somos descendentes de africanos. Acho que, quando a gente assumiu isso do ponto de vista da identidade física, a gente não assumia isso do ponto de vista da necessidade de conhecer mais os nossos ancestrais africanos ou conhecer mais as culturas africanas que até hoje não são bem conhecidas pelos brasileiros e como isso está mais perto do que a gente imaginava.
Acho que há um avanço. A quantidade de alunos negros e descendentes de africanos que estão entrando nas universidades, nas escolas. Isso não é um favor que governo nenhum está fazendo. Acho que é uma tomada de consciência do seu direito de ser brasileiro com toda a diversidade que circula em nosso país. Ler a literatura africana para conhecer a diversidade que ela tem mas também o quê dessas literaturas está dialogando com a literatura brasileira ou uma literatura afro-brasileira que nós estamos construindo aqui no Brasil. Acho que é importantíssimo porque a gente utilizou da escravização dos africanos para criar o Brasil, mas a gente não utilizou a cultura que eles trouxeram para cá. Está na hora de fazer diferente.